sábado, 20 de março de 2010
Show Boat
Cotton Blosson, o barco-show que deslizava pelo Rio Mississippi levando para os portos peças teatrais, números de vaudevilles e revistas de ano, aportou pela primeira vez em 1926, ano em que Edna Ferber (1858-1968), uma escritora americana (lésbica), lançou Show Boat, seu 14º romance, desde sempre um grande sucesso.
O livro se tornou o primeiro grande musical da história da Broadway e três foi levado para as telas de cinema. Em cada umas das quatro realizações, houve alterações profundas. Vamos a elas:
A novela
O Capitão Andy Hawks adquire um barco-teatro chamado Cotton Blosson (Algodão Florido) e o dirige também artisticamente. Sua esposa é uma mulher perversa chamada Parthy Ann. O casal tem uma filha de dez anos chamada Magnólia quando a história começa. Entre os atores da companhia, há uma atriz chamada Julie Dozier e seu marido Steve Baker, além de Ellie Chipley e seu marido chamado carinhosamente por Schultzy. Há, também Pete, o mecânico do barco, que faz investidas em Julie. Steve e Peter brigam e o mecânico promete vingança anunciando saber um segredo de Julie, melhor amiga de Magnólia. Quando a troupe chega em Lemoyne, Mississippi, Pete rouba uma foto de Julie do cartaz de apresentação do espetáculo e leva para o xerife local. No ensaio geral para a apresentação, a polícia chega e exige a partida imediata de Julie Dozie e seu marido do condado. Julie, sem ninguém soubesse, é filha de mãe negra e por isso mulata. Sendo Steve branco, a união dos dois é miscigenada, o que é um crime para as leis locais. Steve pega uma faca e corta o dedo de sua esposa e bebe-lhe o sangue. Com isso, anuncia para todos que o casal tem o mesmo sangue e, por isso, ambos são mestiços. E partem. Ellie tem um ataque histérico porque sua grande amiga vai embora do Cotton Blosson. A despedida de Julie é muito sentida por todos, em especial, por Magnólia.
Os anos passam e Magnólia tem agora 18 anos. Depois de muitas atrizes terem passado pelo barco do pai, chega a sua vez. Mas não há, para ela, um ator que possa junto dela protagonizar. É quando aparece Gaylord Ravenal, um apostador, que, por amor à Magnólia, junta-se ao grupo. Os dois se casam e têm uma filha chamada Kim Hawks Ravenal. Em seguida, o Capitan Andy, em meio a uma tempestade, cai do barco e desparece. O jovem casal parte, então, para Chicago com sua filha. Lá o casal é alternadamente rico e pobre, dependendo das vitórias e perdas de Ravenal no jogo. Ele não trabalha e trai sua esposa muitas vezes com prostitutas. Dez anos depois, então, Parthy avisa que está vindo visitar a filha e a neta que, pelas cartas, sempre disseram estar muito bem. O aviso, no entanto, chega em péssima hora. Ravenal não tem dinheiro algum. Mas o consegue pedindo emprestado para Hetty Chilson, a dona de um prostíbulo, voltando bêbado para Magnólia. Quando ele dorme, Magnólia vai até o prostíbulo para devolver o dinheiro. Lá descobre que a secretária de Hetty Chilson é, na verdade, Julie Dozier, sua velha amiga. Julie fica devastada quando sua amiga descobre o que houve do seu futuro. (Nada sobre Steve é mencionado.) Ao voltar pra casa, Magnólia descobre que seu marido se fora para sempre, envergonhado pelo que fez com sua família. Desesperada, Magnólia procura emprego e é contratada para trabalhar numa casa de espetáculos chamada Joppers.
A história pula para 1926 quando os Show Boats já são raros no Rio Mississippi. Kim casou e se tornou um grande sucesso na Broadway como atriz. Seu pai está morto há muito tempo. Um dia, Magnólia recebe um telegrama dizendo que sua mãe, Parthy, faleceu. Então, ela retorna ao Cotton Blossom, que ela decide gerenciar. Quem volta com ela é Ellie, agora viúva de Schultzy.
O teatro:
A versão teatral estreou imediatamente um ano após o lançamento do livro. Oscar Hammerstein II (The King and I, Carousel, South Pacific, Oklahoma!, The Sound of Music…) escreveu o roteiro e os diálogos e Jerome Kern (Ziegfiel Follies 1911,1916 e 1917, além de vários musicais das três primeiras décadas do séc. XX) compôs as canções. A produção foi de Florenze Ziegfield, que nunca tinha produzido algo do tamanho desse projeto. A estréia aconteceu no dia 27 de dezembro de 1927, mas deveria ter ocorrido em abril daquele ano quando Ziegfield queria inaugurar seu novo teatro. Rio Rita, uma opereta, acabou inaugurando o teatro e Show Boat teve que esperar para poder entrar em cena. O espetáculo fez 572 apresentações e marca, de forma radical, a despedida dos anos 20, a década luminosa. Em 1929, com a Queda da Bolsa, os Estados Unidos mergulhou numa nova era. O mais incrível desse musical foi que praticamente não houve aplausos na sua sessão de estréia tamanho era o estranhamento que ele causava. As pessoas não estavam acostumadas com esse tipo de sessão, longa e ousada: uma história impactante do ponto de vista racial, bela musicalmente e com os melhores profissionais do showbiz envolvidos. Era a primeira vez que a questão da miscigenação participava de uma história como essa. Um ator negro interpretando um solo, vários atores negros em figurinos belíssimos, a contemporaneidade do segundo ato, que se passa no mesmo período que sua estréia, em que o elenco usa as mesmas roupas do público, as músicas conhecidas... Florenze Ziegfield, o produtor mais importante da Broadway nunca havia tido um fracasso. E não teve. Na manhã seguinte à estréia, os jornais declaram o início de uma era para o musical americano. E estavam certos.
A versão de Hammerstein para Show Boat começa já na chegada do Barco em Lemoyne. No barco, há a inscrição: “1850-1887”. É um início grandioso com um grande elenco trabalhando nisso. Andy Haws (Charles Winninger) aparece e é saudado pela população local. Ele apresenta a peça teatral que estará em cartaz, anunciando seu elenco. Pete está entre as pessoas do povo. Ele e Steve Baker, ator da companhia e marido de Julie La Verne (Helen Morgan), a atriz protagonista, brigam. Hawks, hábil, informa que tudo aquilo faz parte do show, que também conta com Frank Schultz (sammy White) e Ellie May Chipley (Eva Puck). Andando por ali, Gaylord Ravenal (Howard Marsh) avista Magnólia Hawks (Norma Terris), filha do Capitão com sua esposa Parthy Ann Hawks (Edna May Oliver). Os dois se apaixonam. Anoitece e os negros cantam, liderados por Joe (Jules Bredsoe), um dos trabalhadores do Cotton Blossom, casado com Quennie (Tess Gardella), a cozinheira, Old Man River, sem dúvida, uma das canções mais bonitas que a Broadway já fez. Magnólia corre para contar a sua amiga Julie que está apaixonada. Julie canta Can’t help lovin’ dat man, uma canção somente cantada por negros.
No ensaio para apresentação, Steve bebe sangue de sua esposa após tê-la cortado com uma faca. A polícia chega e exige que os dois saiam de Lemoyne. Magnólia sofre muito com a partida da amiga.
Magnólia e Gaylord substituem Julie e Steve na peça para o desânimo de Frank e Ellie, os dois atores comediantes da companhia. Eles queriam muito ascender, mas não foi dessa vez.
Gaylord e Magnólia se aproximam. Parthy não aprova a união. Na noite de estréia, a casa está parcialmente vazia. Quennie ensina Hawks a convidar todos para a sua peça, inclusive os negros. Cotton Blossom lota para apresentação da peça “The Parson’s Bride”, um melodrama. O primeiro termina com o casamento de Gaylord e Magnólia, feito as escondidas de Parthy com a ajuda de Hawks.
O segundo ato começa com a visita de Parthy e Andy Hawks em Chicago onde Magnólia e Gaylord vivem de forma ostensiva, embora ninguém saiba no que Gaylord trabalha. Essa, no entanto, não é a realidade. Kim Hawks Ravenal nasce e o casal, que depende da sorte no jogo, fica pobre. Mudam-se para uma pensão e nem lá conseguem não fazer dívidas. Ellie e Frank aparecem um dia para visitar os colegas do Cotton Blossom. Nesse dia, chega uma carta de Gaylord para sua esposa. Ele assume que não foi um bom marido e nem será um bom pai. Vai até o convento onde Kim estuda e se despede da filha pedindo que ela nunca o esqueça. Ele abandona a família antes que as coisas piorem. Magnólia fica desesperada.
Com um bandolim, é levada para fazer um teste numa Casa de Espetáculos chamada Trocadero. Antes dela chegar, a estrela principal da casa estava cantando um número musical: Bill, uma da músicas mais conhecidas deste musical (Charles Harris), apesar de já existir antes dele. A estrela é Julie La Verne. Do camarim, ela escuta alguém cantar “Can’t help lovin’ dat man”, canção que ela cantava e que ensinou para Magnólia quando ainda estava no Show Boat. Magnólia canta a música lentamente tocando o seu bandolim. La Verne ouve e abandona o Trocadero deixando a vaga de protagonista livre (mais uma vez) para Magnólia. Frank sugere que a canção seja interpretada como um ragtime, gênero musical muito em moda no início do século XX.
Na passagem de 1926 e 1927, Magnólia Ravenal se apresenta publicamente pela primeira vez no Trocadero. Na festa, está o Capitão Andy Hawks com duas mulheres acompanhantes. Parthy está no hotel e ela não sabe que o marido está na festa. Frank e Ellie se apresentam e ele conta para o antigo diretor que sua filha irá se apresentar também. Hawks não sabia que Gaylord se fora. Magnólia aparece cantando “After the Ball”, uma canção bastante popular no início do século XX. A platéia vaia, mas o Capitão sobe e pede que a filha sorria como pediu para ela quando ela estreou como atriz no Show Boat. Ela sorri e se torna um sucesso.
Em 1927 (ano em que o musical estreou), Magnólia vai visitar o Cotton Blossom com sua filha Kim, já uma adolescente. Joe e Quennie cantam falando sobre seus resmungos como marido e mulher por anos, Kim ensina a avó Parthy, agora com roupas mais leves bem ao estilo da época, a dançar o ragtime. Todos dançam.
Ravenal aparece. Ele encontra-se com a esposa e a filha. O barco vai embora.
A Broadway produziu Show Boat em 1932, 1946, 1983 e 1994. A produção dirigida por Harold Prince, ganhou 2 indicações de Melhor Ator (Mark Jacoby/Gaylord e John McMartin/Andy Hawks, Melhor Atriz (Rebecca Luker/Magnólia) e 2 indicações de Melhor Ator Coadjuvante (Michel Bell/Joe e Joel Blum/Frank). Ganhou Melhor Coreografia, Melhor Figurino e Melhor Atriz Coadjuvante (Gretha Boston/Quennie), Melhor Direção e Melhor Remontagem.
O cinema:
Show Boat ganhou três versões importantes para o cinema.
1929:
A versão dirigida por Harry Pollard, seu último filme, é uma versão parcialmente muda cuja trilha sonora se perdeu no tempo, mas foi reencontrada em vitaphone. Há, então, cenas mudas que utilizam os cartões e cenas faladas com diálogos normais. Há também um prólogo cantado pelos artistas da Broadway (Helen Morgan, Jules Bredsoe e Tess Gardella) em que aparece apenas um cartão com o desenho da peça, o barco Cottton Blossom.
Não é uma adaptação da peça de Hammerstein, mas uma adaptação da novela de Ferber. Assim, o filme começa com Magnólia ainda pequena. A mãe, Parthy Ann Hawks (Emily Fitzroy), foi construída como na novela também, isto é, severa, carrasca, quase má. Como no livro, o casal Hawks morre. E, discordando do livro e do musical, Ravenal (Joseph Schildkraut) não só não tem com Magnólia nunca mais, como morre sozinho em São Francisco, após, como platéia, a vê no palco. Magnólia (Laura La Plante), como na novela, termina em Cotton Blosson, dirigindo o barco após a morte da mãe.
No filme de 1929, não há qualquer menção entre o casamento interracial entre Julie Dozier (e não La Verne) e Steve. Julie aparece como uma atriz branca. A questão da música negra, “Can’t help lovin’ dat man”, no entanto, aparece quando Kim pede que sua mãe toque para ela sua música preferida. Magnólia toca “I’ve got shoes”, música negra, que faz com que os empregados do luxuoso hotel onde ela está hospedada, graças às vitórias de Ravenal no jogo, parem para ouvir. Julie, que, como no musical, não é próxima de Ellie, reaparece não como secretaria de Hetty Chilson, mas como a própria.
1936:
Carl Laemmle, diretor da Universal, não ficou satisfeito com a versão cinematografia de 1929 de Show Boat. A versão de 1936, então, é uma adaptação do musical da Broadway e, por isso, menos fiel à novela de Edna Ferber. Ainda hoje é considerado um dos grandes musicais da história do cinema.
Há poucas diferenças entre essa versão e o musical de 1927. Cotton Blossom teve seu nome substituído por Cotton Palace. Ravenal reaparece no final do filme na estréia de Kim como atriz na Broadway. Gayloard e Magnólia cantam sua canção e Kim revê o pai depois de tantos anos. Muitas músicas da versão teatral não entraram nessa versão cinematográfica. E há três músicas que foram compostas especialmente para ela: I have the room above her, Gallivantin’ around e Ah still suits me.
Duas passagens são marcantes: a abertura do filme é nada menos que esplêndida. E a cena de Old Man River, em que vemos Paul Robeson, é uma das mais belas cenas da história do cinema americano.
Hattie MacDaniel, a babá de Scarlett O’Hara, interpreta Queenie. Como ela, há muitos atores e atrizes em Show Boat que aparecem em ...E o vento levou.
1951:
Em pela era do technicolor, a MGM adapta mais uma vez o musical de Hammerstein para o cinema. Na versão dirigida por Geoge Sidney, quase todos os diálogos de Hammerstein foram reescritos. É a versão que distanciou mais das anteriores incluindo a novela de Ferber.
O personagem Julie La Verne (Ava Gardner) foi aumentado e o de Kim foi quase retirado, aparecendo apenas como uma garotinha. Também o Capitão Andy (Joe Brown) e Parthy (Agnes Moorehead) foram diminuídos enquanto Frank e Ellie (Gower e Marge Chapion) tiveram suas funções na história mais importantizadas, parecendo-se com Fred Astaire e Ginger Rogers. A cena de Old Man River, no entanto, continua sendo a mais famosa da versão. Quennie e Joe (Frances Williams e Willian Warfield) aparecem bem menos também que nas outras versões. “Can’t help lovin’ dat man”, cantada por Julie não tem a nenhuma identificação com black music. A versão de Ava Gardner é lenta e triste. Não há coro negro na versão de 1951, tida como glossy (muito colorida e pobre), e como um exemplo da estética pin-up.
Essa versão, no entanto, foi a única a receber indicações ao Oscar. Duas: Melhor fotografia e Melhor Adaptação de Musical em 1951.
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